(continuação)
A manhã seguinte demonstrou que a nossa opção não foi a
melhor. Ao longo das primeiras horas começaram a chegar grupos de gente aos
magotes e, tal como nós, optaram pela solução mais fácil, acampar na praia.
Correndo o risco de vermos o local onde estávamos alcançar um índice populacional
superior à baixa de Tóquio, resolvemos arrumar as trouxas e subir o rio em
algumas centenas de metros, á procura de um local com sombra e com pouca gente.
Não foi preciso procurar muito. Rapidamente assentamos arraiais junto a uma
pequena clareira, a uns bons 30 metros da margem do rio, no meio do mato bravo
mas, por enquanto, limpo e sossegado. No local ainda foi possível aproveitar o
que restava de uma antiga fogueira, rodeada por enormes calhaus, a que daríamos
bastante uso.
Nos primeiros dias, o tempo passava-se entre o tasco e o
local do festival, totalmente aberto aos transeuntes, devido ao facto de cortar
a meio uma rua á qual, com muito boa vontade, se poderia chamar de “principal”.
À distância de 30 anos, uma primeira visão do espaço onde o Festival iria decorrer
era reveladora do completo amadorismo e da dimensão do potencial desastre que
se aproximava. À época, o entusiasmo juvenil, a sensação de liberdade e a total
inconsciência no sentido lato do termo, faziam tábua rasa de tudo o resto.
As casas de banho, e por casas de banho entenda-se retretes
ou sanitas, conforme preferirem, seriam insuficientes se estivéssemos a falar
da comunhão solene de um órfão de pai e mãe com um enorme défice de
competências sociais. Como se tratava de um festival onde eram esperadas cerca
de 20,000 pessoas na primeira noite (números avançados pela organização),
rapidamente se chega à conclusão que o técnico que planeou esta parte do evento
tinha um mórbido sentido de humor, era um perfeito incompetente ou sofria de
prisão de ventre desde o regicídio de 1908.
No que toca à alimentação, e tirando o já referido tasco da
azenha, sobrava a boa vontade de alguns indígenas que vendiam sandes a preços
nada especulativos, ao contrário do que se poderia esperar. O resto era o zero
absoluto. Da parte da organização, que me lembre, nada foi providenciado.
Segundo julgo saber existia um ou dois parques de campismo “oficiais” onde a
situação poderá ter sido diferente. A maioria das pessoas que ocorreu ao
Festival e que, tal como nós, acamparam no meio do mato e tinham pouco ou
nenhum dinheiro, passaram fome e/ou roubaram a fruta dos pomares vizinhos.
Desde já, aqui ficam as minhas desculpas pelos actos à época cometidos e um
muito obrigado pela compreensão dos locais que sempre nos trataram com o maior
carinho, em vez de nos aviarem umas sacholadas na cornadura que era aquilo que
merecíamos.
O palco, uma minúscula estrutura de betão de pouco mais de
metro e meio de altura, era ladeado por uns frágeis andaimes que ameaçavam
desmoronar-se à primeira rajada de vento e serviam de suporte às colunas do PA
que, alguns dias mais tarde, seriam cobertas por uns plásticos, devido ao
anúncio de uns chuviscos de verão. Junto ao palco, abandonados à sua sorte,
repousavam meia-dúzia de gradeamentos que, durante os primeiros 5 minutos do
concerto dos Bunnymen, serviu para manter o público afastado do palco. Na
cobertura de zinco, era visível um conjunto de lamparinas, que constituía o
sistema de luzes e seria utilizado ao
longo dos nove dias do evento.
Tudo aquilo parecia mais apropriado a um arraial minhoto que
a um Festival de música onde estariam presentes milhares de pessoas. Mal sabíamos
nós que, alguns dias depois, estaríamos mesmo a assistir, atónitos, a uma
verdadeira desfolhada minhota.
(continua)
A trinta de luz de distancia,a narrativa nua e crua de quem superou 11 dias de privações,faz jus ao ocorrido dentro e fora da paliçada; que na calada da noite era invadida pela urbe de indios ávidos de decibeis.
ResponderEliminar