Acabado de construir em Plymouth em 1836, o vapor "PORTO" andou por muitos anos em serviço de transporte de passageiros e correio entre a Invicta e Lisboa, tendo a sua viagem inaugural ocorrido no dia 1 de Janeiro de 1837, com 17 passageiros a bordo.
Em 28 de Março de 1852, saíu o Porto da barra do Douro com destino a Lisboa, mas encontrando forte temporal a sul da Figueira da Foz, retrocedeu a norte, com o objectivo de procurar abrigo em Vigo. Passando todavia diante da barra do Douro, e por pressões do passageiros e porque obtivesse autorização de entrada dos pilotos, decidiu entrar. Uma alegada má manobra, precipitou o vapor para as pedras do Touro e Forcada, onde acabou por desintegrar-se devido à força do mar. Pereceram todos os 36 passageiros (entre os quais muitas figuras de relevo da sociedade portuense da época) e 15 dos 22 tripulantes. Foi a maior tragédia ocorrida na barra do rio Douro.
Publico agora uma carta escrita pelo então piloto-mor da barra, Joaquim Luiz de Sousa que, face aos ataques na imprensa quer contra a decisão dos pilotos de dar entrada ao navio, quer contra os habitantes da Foz acusados de cobardia por não terem tentado o resgate dos náufragos, entendeu ser seu dever defender-se e aos seus conterrâneos.
Vai conforme publicada no Jornal Periódico dos Pobres do Porto, com data de 7 de Abril de 1852. Apreciem o estilo, que é um regalo e um bom exemplo de como se lavrava a língua em meados o século XIX.
"Sr. Redactor do Eco Popular,
Julguei que os serviços que durante o longo espaço de 60 annos tenho prestado à minha Pátria. Julguei que os auxílios que me ufano de ter prestado à humanidade, serião motivos assás fortes para na minha idade de 74 annos, e hoje falto de saúde, merecer de V.Sª sendo como foi tão pouco escrupuloso na sua accusação, há-de permitir que eu em represália seja merecidamente severo na minha defesa.
O artigo de fundo do seu jornal nº 73 de 30 de Março último, é-me altamente offensivo, e aquelles que me conhecerem lembrar-se-ão da ferocidade de um Nero e da barbaridade de Calígula. Porém quem concedeu a V.Sª o direito de se arvorar em juíz da minha reputação? O conceito que os homens de bem fazem de mim sei-o eu, e muito me honra; o de V.Sª nunca tive o gesto de ouvir. Mas que bem tem V.Sª feito à humanidade? Quaes são as acções que attestão a sua philantropia e charidade? Nenhuma talvez? Ora então abrirei o meu alfarrábio e, lendo-lhe alguns apontamentos, perguntarei: Quando eu arriscava a minha vida em vária occasiões, desde o anno de 1810 até 1845, para salvar como salvei as tripulações dos navios Maria - Santa Cruz - Carmo - Olália - General Silveira - Lusitano - Conde de Cavalleiros - Brilhante - União - Especulador - Hebe e alguns outros cujos nomes não registrei; aonde estava V.Sª? Quem sabe? Talvez estudando a maneira s'appoquentar o seu similhante? Talvez fazendo ensayos da arte de calumniar? Talvez discutindo o plano de mandar dar por philantropia e charidade de meia dúzia de cacetadas no próximo. Só por não pensar como V.Sª. Diga-me mais. quando em 12 de Dezembro de 1830 se afogarão 9 desgraçados em Mathosinhos, e eu perdia à minha custa 300$000 reis, e ainda assim subscrevia com 40$000 reis para alívio dos infelizes, que misturarão a fome com as lágrimas; que acto de philantropia e charidade fazia V.Sª? Eu sei; talvez nenhum: publicou a conta corrente da comissão de socorros, de que eu também fazia parte; mas em logar de imitar o exemplo d'outro seu collega, fazendo essas publicações grátis, recebeu da mísera viúva e do orphão infeliz a quantia de seis mil rei!!! Isto pelo comparativo da minha conducta com a charidade de V.Sª.
Agora vamos ao desastroso naufrágio do vapor Porto. Todos ou quase todos sabem que estou suspenso do exercício das funções de piloto-mór desde o princípio do mês de Março por insistir no pagamento das pilotagens dos navios do Estado, que o Govêrno de S.M. ordenou e o Sr. Intendente da Marinha do Porto confirmou em seus offícios de 30 de Junho e 22 de Julho de 1846, que tenho em meu poder. por isso não assisti à consulta dos pilotos para a entrada do vapor Porto, no entanto hoje é de todos sabido que ella foi unanime em que o referido navio podia entrar, e tanto não julgavam os pilotos diffícil a entrada, que o piloto de nº José Joaquim de Meirelles, encarregado para o vapor, apenas se tinha dirigido para a barra com uma só catraia, acompanhado do piloto de nº Manuel Francisco Moreira. Diz-se agora: os pilotos são culpados porque chamárão o vapor Porto para entrar quando não era occasião; mas suppunhamos que os pilotos Que o mandavão retirar, e que o sinistro em logar d'accontecer na barra do Porto, aconteceria em outra parte. Que diria V.Sª? Oh! os pilotos são culpados porque mandarão retirar o vapor, quando elle podia ter entrado, porque já o havia feito antes em peor occasião, e não tinha falta de cousa alguma, apesar de isso ser diffícil de saber-se, por que me consta que nem o Código de Marryatt tinha a bordo.
O que é certo, é que o vapor Porto navegou bem mesmo na passagem mais arriscada, e o seu desgoverno depois que passou aquelle sítio, só se pode attribuir a grande descuido dos homens do leme, que fazendo guinar a embarcação primeiro, para sul, e depois para norte sem firmeza precisa na sua marcha occasionou a horrorosa catastrophe. Eu apesar de estar suspenso, apesar de doente à (sic) mais de 60 dias, e em uso de remédios, e com recomendação do meu médico, o Sr. Dr. António Fortunato Martins da Cruz de evitar tudo quanto fossem fadigas, e até de ir à barra, logo que ouvi os primeiros gritos d'alarme, sahi de casa, e corri ao sítio da Senhora da Lapa, e vendo o estado do vapore a sua arriscada situação sobre as pedras da Forcada, ordenei logo que fosse desencalhada a minha catraia grande, e promettendo dinheiro à companha, a quem já paguei pelo trabalho que tiverão) fiz embarcar uma ostaxa e um ancorote, embarcando também meu filho o piloto do nº António Joaquim de Sousa Carvalho; tive porém a desconsolação de vêr que nem a catraia em que foi meu filho, nem a do piloto do nº o SR. Francisco Soares Lima, que ali tinha chegado poucos minutos antes, por estar desencalhada) e aonde se achava o piloto encarregado ao vapor o Sr. José Joaquim Meirelles, que tinha passado da sua catraia para aquela, não podião passar abaixo do sítio da Meia Laranja, porque o escarcéu o não permittia, e tiverão de voltar para cima.Nesta occasião o vapor avançou mais para leste e então o piloto do nº Sr. Manoel Francisco Moreira, por estar em uma catraia mais pequena pode passar por entre as pedras ao pé do vapor, e obter um cabo, o qual fugindo logo das mãos da gente da catraia fugiu com elle a esperança de estabelecer-se a comunicação com o vapor, e por isso a salvação para os infelizes que estavão a bordo. Desde então a aproximação do vapor por via de catraias tinha-se tornado impossível; a maré começara a ressentir-se da água de cima que o rio trazia, e a arrebentação do mar por toda a parte cada vez mais violenta; batia de flanco no casco do navio, arrojando-o contra as pedras, de que resultou partir-se o leme, arrombar-se; e finalmente ir para o fundo. Torno a repetir o meu mau estado de saúde não me perimittia, nem permitte fazer grandes excessos, mas ainda quando podesse fazer as bizarrias que d'antes practicava; estou convencido que ellas de nada appoveitavão, porque desde o momento que se perdeu a esperança de comunicação com o navio, também a esperança de salvar-se a gente.
Agora Sr. Redactor, grita-se de tudo e contra tudo, culpa-se os pilotos; chama-se malvada à gente da Foz, e ataca-se sem piedade, e sem distinção uma povoação inteira como se fosse um bando de escravos a quem algum gritador quando n'outro hemisphério viu talvez surrar sem compaixão, só porque deixarão d'apanhar para seu humano Sr., ou caixeiro alguns arráteis d'arroz.
Sr. Redactor, não se queixem de quem não tem culpa na horrenda catastrophe que acabamos de presenciar. Queixem-se sim da indolência, a culpável imprevidência com que se deixou alienar, e vender os objectos com que se podião ter salvado tantas vidas, victimas, como se a Providência nos tivesse dado a segurança de que na barra do Porto, não tornarião haver naufrágios. Queixem-se de quem com a mais requintada maldade, e bárbaro intento tem obstado a que se tenha feito cousa alguma a favor da barra do Porto, aonde a experiência me tem mostrado no decurso de 60 anos, que se pode conseguir alg ummelhoramento, quebrando as diversas lages que difficultão a sua entrada, pelos meios que a hydráulica ensina, e que no estrangeiro se estão pondo em práctica, e canalizando quanto se possa o rio nas suas duas margens, como já em 1835 apresentei ao Governo.
Quando ainda à pouco se tractou de fazer um empréstimo de 40 contos para dar começo às obras da barra do Porto aonde estavão tantos declamadores? Então porque se consentiu que o egoísmo, a especulação e talvez a maldade entrassem em cálculo, deixando ao desamparo a sorte da humanidade?!!!
Sr. Redactor já vai sahindo longo este artigo, por isso concluirei observando que estou velho, e doente; que tenho gasto a minha saúde ao serviço da Pátria, e muitas vezes no da humanidade afflicta, a quem com risco da minha vida tenho estendido muitas vezes a mão no momento em que um morte agonizante ia pôr termo a uma existência que servia d'amparo à esposa e filhos, e isto Sr. Redactor digo-o com ufania, sem nenhum outra recompensa, mais do que aquella que tem competido ao meu merecimento, e à minha justiça. Embora a vil intriga me tenha querido morder como agora, eu tenho tido o prazer, de ver mais de uma vez, que esses mesmos intrigantes são aquelles que se teme encarregado de justificar o meu préstimo, a minha sinceridade e os importantes serviços que sempre, tenho prestado ao Comércio, ao Estado, e à humanidade. Sou, Sr. Redactor!
Seu Venerador e criado, Joaquim Luiz de Sousa, 1º Tenente Graduado d'Armada e Piloto-mor da Barra, Foz do Douro, 3 d'Abril de 1852".
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