sábado, 14 de novembro de 2015

Não me fotografem a comida, se faz favor

Olhando o Sofrimento dos Outros
Susan Sontag
Quetzal, Julho de 2015
125 páginas 




Susan Sontag foi uma das referências culturais do século passado. Companheira de Annie Leibovitz, escreveu ensaios, ficção e artigos em publicações tão distintas como a New Yorker, a Granta ou o New York Times. Morreu em 2004, aos 71 anos.

Neste ensaio, o último a ser publicado ainda em vida, Sontag analisa o poder das imagens e medita sobre as motivações de quem as captura e de quem as consome.

É um livro interessante e a perspectiva que mais me cativou prende-se com o assunto do costume: a natureza humana. Desde logo, apresenta um ângulo interessante sobre a percepção do horror, a partir do poder da imagem. Acaso a barbaridade de Hiroxima, documentada pela foto do Enola Gay antes da partida e das fotos do "cogumelo", excede em número e horror a do bombardeamento de Dresden?  Deste não há imagens e poucos saberão o que foi destruído, o número de vítimas, o horror dos que morreram queimados pelas bombas de fósforo incandescente. Há evidentemente uma diferença fulcral: a velocidade e a escala dos efeitos destruidores de um único engenho. E no entanto, o número de vítimas não é muito diverso.

Uma fotografia é sempre um testemunho. É o tira-teimas factual, um dos inúmeros espelhos onde se reflecte uma realidade. É mais poderosa do que um manifesto, um testemunho. Não raras vezes, define um todo. Os exemplos que Sontag aponta no livro são os obrigatórios: quando pensamos na Guerra Civil espanhola, vemos a foto de Capa do soldado no momento da morte, largando a arma, com o corpo arqueado. Se falamos de Auschwitz, visualizamos a foto do portão da entrada, com a sua inscrição sinistra. A vitória americana no Pacífico é a bandeira segura por soldados em Iwo Jima, o dia D é a foto desfocada de Capa. 

As mais icónicas evocam, habitualmente, feitos, momentos históricos, valores, actos de coragem. Mas também testemunham horrores, atrocidades, inimagináveis actos da imparável maldade humana.

Hoje, a fotografia serve todos estes propósitos. Mas a profusão de aparelhos capazes de capturar imagens, associada à disseminação da utilização das redes sociais, mudou o paradigma. Hoje, uma foto é um testemunho de existência.

Vemos, diariamente, fotos de comida, de painéis de instrumentos indicando a temperatura do ar, selfies, os filhos, os locais de férias, bebidas exóticas a serem consumidas. Há dias, pude ver um pequeno filme caseiro onde um cão, que havia encontrado um bebé abandonado numa caixa do lixo, o carregava na boca para um local mais seguro (presumimos). Fiquei boquiaberto por constatar que quem o encontrou filmou a cena ANTES de retirar o recém-nascido da boca do rafeiro, o que define bem as prioridades que o nosso cérebro globalizado estabelece: regista primeiro, publica a seguir, ajuda depois.

Há dias, a propósito de uma descoberta na área da mecânica quântica, li isto: "De acordo com a teoria quântica, a natureza de uma partícula não existe até que ela seja medida, o que significa que ela apenas existe em um estado de superposição até que alguém decida observar". É um bocado o que ocorre no quotidiano actual: não interessa o que vemos, o que sentimos, o que experimentamos, o que comemos, com quem estamos - se não puder ser partilhado. As singularidades do dia-a-dia só adquirem significado apenas se e quando passam por um par de olhos adicional, de preferência por muitos. E após a partilha, queremos a validação - o "gosto", o polegar para cima.

Dantes, contava-se um episódio pitoresco da nossa experiência e desesperava-se perante a incredulidade dos ouvintes. Hoje, ripa-se do smartphone ou do tablet e zás! toma lá a prova: era ou não era um cão com 3 orelhas? Comi ou não comi a do quinto esquerdo?

Hoje a fotografia é menos uma visão de algo, ou até um testemunho: hoje a fotografia (alguma, bastante) é essencialmente prova forense.


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