sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Dupont Recomenda

Não somos onde nascemos. Nós também somos onde nascemos.

Nasci no Porto de uma família transmontana que emigrou para a Invicta. Calhou ser assim. Podia ter sido a França, ou a Alemanha, ou a Suiça.

Desde que me lembro, a minha vida era passada ¾ no Porto, o resto numa aldeia transmontana chamada Rebordelo, a pouco mais de 20 quilómetros a sul de Vinhais, na encruzilhada das estradas provenientes de Mirandela, Bragança e Chaves.

Nos anos 70/80 do século passado, a diferença da vida numa aldeia transmontana para a vida de uma cidade como o Porto (e o Porto é, na essência, muitas aldeias juntas) seria como a diferença de Lisboa para Nova Iorque – colossal!

Então, na missa os homens ficavam à frente, as mulheres na retaguarda da nave da igreja. Dar um beijo em público era impensável, e uma mulher jovem não vinha para a rua sozinha (de noite, então, nem pensar!).

Os cafés eram frequentados exclusivamente por homens – as mulheres poderiam entrar para uma compra rápida e sair.

No rio Rabaçal, a praia estival da pequenada, não havia biquinis e o meu primo usava Atrix como bronzeador. Eu brincava no pequeno areal com latas de conservas vazias a improvisar camiões de carga, enquanto a minha Mãe e a minha Tia Cármen lavavam a roupa da semana, esfregando-a nas pedras mais largas do rio.

Nos arraiais de Agosto, a rapaziada procurava sinais encorajadores que do outro lado do terreiro as moças encriptavam em rápidos olhares.

Usavam-se expressões como “amigada” ou “barregã” para definir mulheres apaixonadas, de cama e mesa comum com homens que as não tornavam “mulheres sérias” pelo casamento.

O romance era o do Artilheiro e Guiomar, nesse excelente bocado dos “Novos Contos da Montanha” do inigualável Miguel Torga (nunca ninguém escreveu sobre Trás-os-Montes como ele), em que velhas teciam namoros consumados em medas de feno à sorrelfa.

Vem isto a propósito do extraordinário “O Beco dos Milagres” de Naguib Mahfouz, Nobel da Literatura em 1988. Dele foi feita uma adaptação para um filme mexicano (El callejón de los milagros) de 1994, realizado por Jorge Fons, com Salma Hayek e que decorre numa realidade distinta da originalmente descrita por Mahfouz: a Cidade do México.

A acção desenrola-se num recanto do Cairo, (que podia ser do Barredo ou da Madragoa) o beco Midaqq, e entretece a história da ambição de uma Bovary egípcia (Hamida) com o quotidiano de quem habita e trabalha nesse recanto do mundo.

Nos dias que correm assistimos a uma tremenda intolerância entre os dois mundos monoteístas ocidental cristão e islâmico. O que não deveria ter passado do plano político (as acções terroristas pró-palestinianas ou anti-judaicas, como se queira) resvalou rapidamente para o campo religioso o que entornou definitivamente o caldo.

A arrogância ocidental, que não distingue entre árabes e muçulmanos, olha com sobranceria para os costumes culturais destes, esquecendo olhar para a sua própria casa. No alto da sua intolerância ignorante, analisam os costumes de outros povos à luz da sua actual cultura Coca-Cola e sentem-se moralmente superiores.

Muito do que leio sobre costumes árabes, revejo-o na minha tradição transmontana – zona que nem foi particularmente influenciada pelos invasores do primeiro milénio da era cristã.

É um livro simples, mágico, como só alguém que conhece e ama bem aquilo sobre que escreve o pode fazer. Os personagens são densos, têm carne, fibra, músculos e ossos. Lemos e conseguimos vê-los e cheirá-los. Não são marionetas nem estereótipos. São gente que nos faz imediatamente lembrar de alguém que conhecemos.

Foi um orgulho para a minha biblioteca acolher tão ilustre novo membro na família .

Especial agradecimento ao “O Enigma E O Espelho” a quem surripiei a foto da capa. Estou certo que a Clara Branco, que participou na tradução do livro, não leva a mal. E a Contraponto, que o editou, também não.


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