Os pensamentos iluminados de duas mentes brilhantes escorrem pelas páginas deste coiso.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
O Meu Problema Com As Mulheres - Annette Peacock (história curta de C.E. Maia)
"Não preciso de tomar valium ou ópio para saber como me vou sentir quando te deixar", disse ela naquela voz grave e aveludada que fazia sempre que tentava dizer algo profundo. Para quem se conhecia há menos de 48 horas, era uma afirmação um pouco exagerada...
Conheci-a numa loja de discos, um segundo andar de uma casa antiga da Rua Passos Manuel, no tempo em que as lojas de discos se chamavam discotecas e os empregados conheciam os clientes pelo nome. À época era o lugar ideal para comprar algumas revistas de música e aproveitar um ou outro negócio de ocasião onde gastar o pouco dinheiro que tinha no bolso. Após perder dez minutos nas prateleiras organizadas por ordem alfabética, onde se misturava o jazz com o rock sinfónico e alguma música popular inglesa (tão na moda alguns anos atrás), acabei por retirar "The Perfect Release" do meio da confusão, observei atentamente o estado do vinil e encaminhei-me para o balcão.
E foi aí que a vi pela primeira vez. Completamente vestida de vermelho vivo, levemente inclinada num sofá junto à parede do fundo, a fumar um Marlboro, coisa rara de encontrar nesse tempo. Tinha o cabelo escuro e escorrido, uma face comprida e um corpo esguio. Devia andar perto dos quarenta anos, ou pelo menos assim parecia.
Pousei o disco em cima do balcão. "São duzentos paus" disse o Jorge, o empregado, um tipo simpático, levemente ganzado, veterano do Maio de 68, ostentanto um crachá do Mao Tsé Tung no colete de cabedal. E foi quando procurava os parcos trocos nos bolsos das calças que a ouvi dizer, alto e bom som, "a minha mãe nunca me ensinou a cozinhar, é por isso que sou tão magra".
Olhei em volta para perceber com quem ela estava a falar, mas como estavamos apenas três pessoas na sala e o Jorge tinha tanto interesse em mulheres como eu em contrair cancro de pele, presumi que era comigo. Senti-me corar um pouco. Com vinte anos estava habituado a linhas de engate tradicionais do tipo "costumas vir aqui muitas vezes?" e pouco mais. Mas nunca dito por uma mulher com idade para ser minha mãe. O Jorge tamborilou com os dedos no balcão e sussurrou: "Não ligues, é a Annette."
Claro que já tinha ouvido falar da Annette. O meu amigo Miguel, que no que toca ao género feminino tem mais entalhes na coronha que o número de carimbos no passaporte do Mário Soares, já me tinha falado dela. "É uma maluca! Gosta de gajos mais velhos, já foi casada duas vezes e é amiga do Miles, do Hancock e do Jarrett."
Atabalhoadamente voltei a pegar nas moedas que tinha colocado em cima do balcão, balbuciei "faltam-me vinte paus, guarda isso aí que eu volto amanhã", desci as escadas a correr e saí para a rua a pensar a quem deveria cravar o papel que me faltava e se ela voltaria a estar lá no dia seguinte.
(excerto do livro "O Meu Problema Com As Mulheres, de Carlos Eduardo da Maia)
(Succubus, Annette Peacock)
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